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Ciência e educação não se misturam com política (?)


O ano era 2016, eu já havia terminado a minha licenciatura em ciências biológicas e estava no mestrado em ecologia e conservação. Em muitos casos, o primeiro ano de mestrado é dedicado às disciplinas e o segundo, especificamente, para a confecção da dissertação. Para realizar esse trabalho, que se trata de uma pesquisa científica, eu passei todo o ano de 2016 coletando dados, que era, basicamente, passar uma semana por mês avaliando árvores em áreas de floresta de cerrado.

O trabalho era basicamente esse

Ficar isolado em fazendas e florestas de cerrado era como recarregar as baterias para mim: dias sem internet, sem sinal de celular, sem o barulho e a sobrecarga de informações da dita “vida civilizada urbana”. Eu passava esse tempo basicamente: conversando sobre o universo e tudo mais com as pessoas que trabalham nas fazendas e com a turma da biologia que estudavam outros grupos de seres vivos, observava o céu noturno sem a poluição luminosa das cidades, claro, passava a maior parte do tempo isolado no mato, nas trilhas, na beira do rio, assistindo o pôr do sol, fotografando seres vivos dos mais diversos, e por fim e não menos importante, avaliava as árvores que havíamos marcado em vários fragmentos de floresta (ahh.. Deu até uma saudade aqui). Ao longo desses dias era como se, lentamente, a ansiedade fosse sendo drenada de mim, dando lugar a uma tranquilidade e clareza no raciocínio.

Porém, em 17 abril de 2016 -eu me lembro muito bem da data-, quando eu voltava do mato num uno verde ano 2002, as cenas que me deparei quando entrei na cidade tiraram toda a minha tranquilidade de dias em campo: o evento, que parou Jataí, com direito a telão em praça pública nada mais era que a votação do impeachment de Dilma Rousseff, na câmara. Assistir parte daquilo foi um show de horrores e selou o que seria para mim, a partir dali, a minha curiosidade, tristeza e luta quando o tema é a relação entre política, educação e ciência. E para o Brasil, selou o que seria uma crise política sem precedentes, com impactos profundos nos campos da ciência e educação.


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Onde aprendi que ciência, educação e política se misturam: a importância de uma formação política básica.

2016 foi um marco para mim, mas não foi por aí que comecei a me aprofundar sobre esse negócio de política, foi na faculdade que a fagulha política acendeu em mim. Antes da graduação, tenho poucas lembranças sobre momentos em que parei para pensar sobre esse tema -a danada da política-, muito menos como ele se relaciona com educação e ciência.

Em casa, era um assunto do tipo: “política é coisa chata e não se discute, não vai mudar nada na nossa vida, é só corrupção”, algo realmente distante da nossa realidade. Na escola, lembro de aulas em que professores reclamavam “da época do Collor”, “do fim da ditadura” e do preço das coisas e da inflação nesses tempos. Mas foi no ensino médio que um momento me marcou profundamente, um momento que, de algum modo, fez uma chave girar na minha cabeça.

Nossa escola desenvolvia alguns projetos extracurriculares e um deles tratava da importância e preservação do rio que abastece a cidade, o Rio Claro. Das muitas iniciativas do projeto, que iam desde visitar o rio, passando realizar palestras de sensibilização com a população local, uma me marcou: a discussão do tema na câmara de vereadores. Lá falamos da importância da preservação do rio frente as atividades agropecuárias da região.

No evento, além de nós, meros estudantes do ensino médio, estavam presentes vereadores e produtores rurais, principalmente GRANDES produtores. Após falarmos do impacto dos agrotóxicos e do desmatamento no rio, tivemos que ir embora devido aos berros e xingamentos dos ruralistas, que ficaram furiosos. Isso, professores e estudantes do ensino médio calados por quem tem mais influência política na câmara. Foi ali -num misto de medo, revolta e tristeza-, que aprendi que poder econômico e político andam de mãos dadas. Não importa a maioria de pessoas nem os melhores argumentos, o que importa é a maioria de dinheiro.

Na época fiquei confuso, me senti profundamente oprimido, mas isso tudo só foi fazer sentido na universidade, em que, pela primeira vez em minha vida, tive uma formação política e social, principalmente graças a licenciatura (foi como sair da caverna e ver a ofuscante luz da complexidade e podridão das relações políticas). Foi a partir daí que consegui olhar para fora do meu próprio umbigo sob a perspectiva da ciência. Pois é, foi na universidade que aprendi muito sobre como a política se relaciona com nossa vida, descobri o quanto eu não sabia sobre o assunto e pior, como muito do que eu pensava estava simplesmente errado e que muito do nosso senso comum sobre política está permeado de interesses que não nossos.


Mas formação política deveria acontecer desde o ensino básico…

Sem dúvida todas as pessoas deveriam ter uma formação de qualidade (mas o que é essa formação de qualidade? Pensa aí depois me conta) sobre política e ciência desde o ensino básico, afinal, são aspectos centrais na estruturação da sociedade moderna. Todos deveriam ter acesso a uma formação que fosse muito além de repetição de conteúdos vazios de significado, distantes da realidade e das necessidades sociais. O ensino de ciências ainda enfrenta diversas dificuldades na escola básica, na busca da formação de sujeitos críticos, e o mesmo acontece nas ciências sociais, que cada vez mais perdem seu espaço. Eu gostaria de ter tido uma formação política no meu ensino fundamental e médio, mas devido os diversos problemas que a escola pública enfrenta -mesmo para formar para a criticidade na totalidade- esse tema passou quase em branco para mim, a ponto de eu parar para pensar no significado da palavra política apenas na universidade. Só na universidade pública tive o amparo e a liberdade intelectual para descobrir muito sobre os interesses políticos em nossa sociedade.

Caro leitor ou leitora, talvez você se identifique com isso: com uma escola que prefere não falar de política, principalmente da política brasileira (e muito menos de ideologias políticas). Pare para pensar: como foi sua formação sobre ciência e política na escola? Onde aprendeu sobre esses temas e como eles se relacionam? Se fez ensino superior, aprendeu algo por lá? E mesmo hoje, você sabe pelo menos a definição de política, ciência e educação? Afinal, essas palavras são de certo modo polissêmicas, podem ter vários sentidos dependendo do contexto que forem usadas (e os conceitos são importantes).

É assustador descobrir como sabemos tão pouco de aspectos tão essenciais da sociedade contemporânea, aspectos que representam importantes ferramentas de transformação social. Afinal, somos uma sociedade organizada pela política, mas que sabe muito pouco sobre isso.

Nota: cabe ressaltar, que aqui falo de política no sentido de gestão, administração e organização da vida coletiva, e mais especificamente de políticas públicas. Continuando…

Basicamente, recebi pouca formação sobre política e políticas públicas no ensino básico, a coisa ficava pior quando se tratava de abordar o que é e qual a importância (e perigos) de determinados posicionamentos políticos e ideologias. Afinal, política não é só o que está no papel ou na lei, tem muito mais por trás dela, nuances que nem sempre ficam claros para quem não passa por uma formação teórica básica. Eu, infelizmente (ou felizmente), comecei a aprender isso, na prática, nesse evento na câmara (para depois, pude articular isso com a teoria).

É essencial que todos os sujeitos passem por um processo de formação que descortine o complexo universo da política e das políticas públicas. Ou pelo menos deveria ser. Pois, por mais que muitos queiram se colocar como “vivendo fora do ambiente político”, como pessoas “apolíticas”, “neutras” e “imparciais”, é impossível pensar nossa sociedade e vida cotidiana sem política e suas estruturas de poder e interesses. Para ficar mais claro: não há como escapar da política, e também, não há como negar a importância de uma formação política, principalmente quando o assunto é ciência e educação.


Ok, mas como educação e ciência se relacionam com política?

Bem, você não precisa virar um especialista em tudo isso, não precisa saber sobre toda a complexidade que envolve ciência, educação e política, afinal, nem os especialistas sabem tudo sobre. Porém, existe uma formação básica, que nos torna críticos o bastante para perceber o que nos controla e qual o nosso papel na busca de uma transformação social, pois é… deveria existir uma formação básica que nos faça entender até onde podemos exercer controle sobre essas três esferas da sociedade.


Mas antes de seguirmos, algumas definições…

A ciência não é uma entidade, ela é feita por pessoas e é uma busca coletiva por explicações de maneira racional. É a busca pela compreensão da realidade de maneira sistematizada, com amparo em evidências. É um conhecimento historicamente determinado, obrigado a mudar com base nos erros e consequentemente, se aperfeiçoar. A ciência se transforma conforme a humanidade se transforma e, em simultâneo, transforma a humanidade.

Já a educação, é um processo contínuo pela qual formamos pessoas para viver em coletivo e, especificamente a educação formal, é espaço planejado e organizado para formarmos sujeitos que entendam como a sociedade funciona com base no conhecimento humano acumulado ao longo de milênios, um sujeito saiba atuar na busca de um bem-estar individual e comunitário no contexto de uma humanidade cada vez mais complexa.

A política se articula essas duas dimensões da humanidade: com a ciência e educação. E, em simultâneo, a educação formal e a ciência influenciam a política. Mas como se dá essa relação? Vamos num passo a passo:

  • O conhecimento produzido na pesquisa científica deve embasar muito do que é realizado na educação formal (nas escolas e universidades) e nas políticas públicas.

  • A educação forma para vida coletiva, vida essa mediada pela esfera política, uma formação de qualidade prepara o sujeito para a participação política, participação essa que pode ser mediada por conhecimento científico. O ensino básico deveria formar sujeitos preocupados com políticas públicas pensadas no bem-estar coletivo e comunitário, não políticas públicas voltadas para interesses econômicos privados (políticas públicas com cara de política privada).

  • A política deve também se embasar em ciência no processo de tomada de decisão e a ciência depende de políticas públicas para seu andamento, assim como a educação.

  • A educação pode formar sujeitos que se sintam parte da ciência, que valorizem esse conhecimento, ou até que escolham a carreira científica. A escola forma,

  • Existe outra relação? Comenta aqui no post!

Além disso, essa articulação é afetada por diversos problemas sociais e para piorar, se tal relação não for saudável, ela causa muitos problemas sociais também.

A ciência não pode estar apartada da política e nem a política da ciência. Quando isso acontece, vemos tomadas de decisão que não cumprem seu papel para o bem-estar coletivo. Quando a política abandona a ciência e abraça quem paga mais ou, quem oferece soluções fáceis (como negacionistas, pseudociências e religiões fundamentalistas) assistimos horrores como os do tratamento precoce para COVID. Claro, temos outros problemas quando a ciência começa a servir meramente a interesses políticos escusos, pois política tem muito a ver com ideologia, paixões e interesses, o que pode ser perigoso. (Complicado, não?) Em outro extremo, quando não enxergamos as intenções políticas que, querendo ou não, fazem parte do fazer científico, ficamos a mercê de interesses alheios a nossa vontade.

Por sua vez, educação formal que não aborda questões de política, principalmente sob a perspectiva da sociologia, filosofia, história e da realidade social dos sujeitos, também falha. Uma educação que não aborda isso, ironicamente, está permeada de interesses políticos e ideológicos escusos, basta lembrar do escola sem partido, que na busca de uma suposta “neutralidade política das escolas”, implantava uma formação acrítica dos sujeitos.

E para piorar, tem a economia no meio, e aí, mas isso é papo para outro episódio….


Qual o nosso papel nessa relação: É ano eleitoral, o que fazer nesse momento?

E voltando ao causo do começo do episódio, naquela fatídica volta do mato em 2016, eu sabia muito bem que: minha bolsa de mestrado era fruto de luta política pela ciência; que só pude perceber como aquele suposto impeachment era um desastre político, graças a educação formal superior que tive acesso. Naquela época eu já sabia que: as florestas que eu pesquisava estavam conservadas graças às políticas públicas de meio ambiente (graças ao código florestal, código esse que é resultado de luta política e ultimamente, está um pouco mais capenga”.

Eu não imaginava que as coisas poderiam piorar tanto. Eu não imaginava que o obscurantismo, o negacionismo científico e as pseudociências ganhariam tanta força na política, a ponto de assistirmos uma institucionalização do descredito à ciência, da desvalorização das universidades públicas e das escolas que formem sujeitos críticos.

Depois de 4 anos de um governo desastroso e de 3 anos de pandemia, para muitas pessoas, ficou ainda mais claro como ciência/educação se relacionam com política e consequentemente com a sociedade e nossa vida cotidiana. Tivemos ministros das pastas da educação, meio ambiente e ciência e tecnologia que claramente foram coniventes com uma política de governo baseada no culto a ignorância e ataques à ciência e educação de qualidade.

Depois dessa pandemia, vimos que até a academia científica e os professores da escola tem problemas, alguns de cunho político e até ideológico, ao vermos cientistas, professores e médicos, profissionais que devem basear sua prática em ciência, defender tratamentos ineficazes para o covid. Num mundo onde a crise das mudanças climáticas provocadas pela nossa espécie se mostra um problema complexo, que relaciona economia, ciência, política, educação e sociedade, também fica clara a necessidade de articularmos com mais coesão ciência, educação e política.

Temos pela frente inúmeros obstáculos políticos e econômicos para vencer, obstáculos que criam dificuldades para a participação pública em tomada de decisão em nosso país. Obstáculos na busca de uma transformação rumo a uma sociedade mais justa, equânime, duradoura e que respeite todas as formas de vida humana e não humana.

Minha pesquisa, minha formação, minha atuação como professor estão intimamente relacionadas com política. Minha formação no ensino médio tinha a ver com política, mesmo não sabendo disso. Nossa vida tem a ver com educação, ciência e política. A luta contra a desigualdade social e a crise climática também. A transformação social que tanto buscamos, também.

É ano eleitoral e não penso que deveríamos ter muito cientistas que são políticos, penso que deveríamos ter políticos melhores, penso que deveríamos ter vereadores, prefeitos, deputados, senadores, presidentes e ministros mais sábios, que articulem melhor vários setores da sociedade na busca de justiça social e de reais mudanças na busca da eliminação da visceral desigualdade social e da luta contra a destruição dos ecossistemas.

Penso que deveríamos ter cientistas e professores que compreendam mais sobre política e sobre como funciona nossa sociedade. Deveríamos ter escolas e universidades que formassem sujeitos críticos e não meros consumidores acríticos que serão moídos pelas engrenagens do mercado.



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