Ouça aqui o episódio da semana, ou leia a transcrição para obter uma visão panorâmica da importância das políticas educacionais para a divulgação científica pois o elo perdido hoje é o ensino de ciências, lá na escola básica.
Introdução - Uma mirabolante viagem até o tema do episódio:
Nesse texto eu quero começar sendo chato e te perguntando: qual foi a última vez que você sentou para ler um bom livro sobre ciência e esqueceu do seu celular? Esqueceu de checar essa telinha brilhante na ânsia de ser notificado e pensou sobre todas as explicações e implicações de um tema?
Essa pergunta não está aqui para eu fazer aqui um plot twist e tentar te dar alguma lição de moral, por enquanto. Eu fiz essa pergunta para te dizer que eu, você e o mundo todo está cada vez mais fragmentado, perdidos num mar de demandas e informação que a internet criou. Está cada vez mais difícil focarmos numa coisa só por mais tempo, com qualidade. Qual foi a última vez que você passou dias se aprofundando em um assunto para entender todas as inter-relações que ele faz em nossa realidade? Por exemplo, você deve estar indignado com o preço dos combustíveis (e tem que estar), mas você já parou para pensar que esse pode ser um assunto bem mais complexo do que a maioria das manchetes dizem?
Bem, no meu caso, nesses tempos eu não consigo parar de ler sobre a popularização da ciência, tentando não ficar “fragmentado” e traçando linhas racionais sobre o assunto. Tento estruturar todos os “porquês” os “como” e os “para quem” popularizar a ciência e quais as relações disso com a nossa economia, política e cultura. Eu comecei a pensar nisso de uma maneira um tanto quanto peculiar. Dia desses, lendo um ótimo livro chamado “Ciência picareta”, que além de falar um pouco sobre como a ciência funciona, é um ótimo livro para nos alertar das picaretagens que tentam se passar por científicas e nos enganar, como a homeopatia, algumas bobagens nutricionais, terapias alternativas e como a mídia passa uma visão distorcida da ciência, esse é um debate complexo com muito para nos dizer até sobre a própria ciência e seu isolamento do público amplo, mas é papo para um episódio longo inteiro do nosso podcast. Enfim, ler sobre isso me fez pensar sobre o conteúdo de divulgação científica que consumo na internet em que às vezes, nós divulgadores esquecemos do ensino de ciências e nós mesmo nos distanciamos da realidade brasileira. E isso acabou me fazendo pensar na escola e o ensino de ciências e que depois, me fez pensar sobre a nossa política e nossa economia.
E eu te disse tudo isso para falar que nessa fragmentação do nosso conhecimento, parece estar se tornando cada vez mais difícil compreendermos as amplas relações entre as coisas, principalmente coisas complexas como essa que eu citei e que talvez para você, até agora, possam parecer meios desconectadas. Até a ciência sofre com a fragmentação e cada vez mais, temos idiotas especializados. Por isso, hoje vamos fazer uma pequena jornada para que você comece a entender que para pensar em divulgação científica, primeiro precisamos lembrar do ensino de ciências, da educação básica e políticas educacionais.
Ponto 01 - As danadas das políticas públicas educacionais
Não tem jeito, eu gosto demais da conta de ciência, gosto tanto que quero que todo mundo saiba mais sobre ela: como ela funciona, os causos das pessoas que a fazem e como os seus conhecimentos podem tornar um mundo um lugar melhor e quero que, mais gente faça ciência também. Mas eu gostar de algo não o torna verdadeiro, necessário e muito menos significa que vai acontecer, existe muita coisa relacionada com a popularização da ciência que precisamos saber e que nem paramos para pensar: políticas públicas, ensino de ciências, formação de professores e cientistas, e muito mais. Divulgação científica (DC) não se resume a apenas de um indivíduo, um paladino da aurora tentar salvar o dia. Pois, a popularização da ciência depende não de uma pessoa só, mas também de um sistema.
Mas primeiro, preciso te lembrar que a ciência não é uma entidade fechada em um círculo de pessoas iluminadas e inteligentes que estão distantes da nossa realidade. O conhecimento científico está por aí, nesse aparelho que você está me ouvindo ou lendo e nos outros diversos que você tem na sua casa, nas coisas materiais mesmo. Mas ciência também está no nosso pensamento, nos assuntos que debatemos e muito mais. Claro, não toda a ciência, mas fragmentos dela. Ciência não está fechada nos muros dos centros de ensino e pesquisa, ela interfere e é afetada por questões econômicas, sociais, culturais, ideológicas e políticas. Essas palavras bonitas nada mais querem dizer que ciência, por mais que tenha um jeito particular e fantástico de funcionar -um jeito sistematizado-, é feita por pessoas que vivem numa sociedade com toda a sua complexidade. E para que exemplo melhor dessa relação entre ciência e construção social do que as políticas públicas?
Políticas públicas… esse parece ser um daqueles termos que ouvimos falar, mas que nunca paramos para pensar. Parece chato, porém precisamos abrir o olho sobre ele, por que guia muitas coisas aí na sua vida inclusive. As pessoas de modo geral (talvez você) lembram das políticas públicas quando falamos de coisas mais materiais e próximas da nossa realidade: a qualidade do asfalto (que depende das políticas públicas de infraestrutura), a qualidade da segurança pública, a saúde pública, enfim, coisas que saem com frequência nesses noticiários “loucais” também. Apesar de não entendermos muito bem como funcionam e como podemos agir sobre elas, essas costumam ser as primeiras coisas que nos vem a mente quando pensamos em políticas públicas.
Entretanto, política pública é algo mais complexo um pouco. Pois, se tratam de um processo de tomada de decisões e escolhas, e pensando na nossa sociedade, isso implica naturalmente em conflitos de interesses. As decisões tomadas a partir desses conflitos de interesses (ou não) podem se tornar um conjunto de leis, projetos, programas e atividades realizadas por estados e governos. Parenteses aqui para a diferença de governo e estado, governos são transitórios, estado é algo fixo.
Mas essas políticas públicas não regem apenas essas coisas que costumamos pensar logo de cara, ou seja, elas guiam muito mais que asfalto, transporte publico, saneamento, segurança e saúde. Políticas públicas regem a formação intelectual de um país, com as políticas em ciência e tecnologia e também, as políticas educacionais. Agora você está entendendo onde quero chegar né?
De maneira mais concreta, políticas educacionais envolvem leis, decretos, resoluções, planos, currículos e diretrizes escolhidas a partir de decisões políticas. Essas decisões políticas são complexas, mas envolvem interesses -e conflitos- dos governos, da esfera pública e privada (assim como qualquer política pública). Claro, nem tudo pensado na esfera política se torna algo prático, afinal, usar cinto de segurança é lei, mas está cheio de imbecil por aí não usando. Porém, querendo ou não, em maior ou menor grau as políticas educacionais norteiam nossa educação básica, elas têm seus objetivos amplos e possuem um rumo para que tipo de sujeito queremos formar.
Quando falamos em cortes orçamentários na educação, de mudanças na estrutura curricular escolar (com a Base Nacional comum curricular, por exemplo), de mudanças de modelo de escola, estamos falando da efetivação de políticas públicas. E essa efetivação interfere e organiza inclusive no ensino de ciências, que deveria ser o espaço para alfabetizarmos cientificamente nossa sociedade, formando pessoas que além de conhecer a ciência, possam entender o que fazer com esse conhecimento de maneira direta e indireta e quem sabe, até se tornando cientistas ou professores.
Toda essa viagem que fizemos até aqui foi para chegar no ensino de ciências, para falar que esse é o principal e mais importante espaço para a popularização da ciência e que a divulgação científica é totalmente dependente dele. Um parenteses aqui, nesse texto eu defino popularização da ciência como algo mais amplo que divulgação científica (DC) e ensino de ciências (EC). Costumo dizer que para tornar a ciência popular, precisamos tanto do EC, como da DC.
Continuando, o que quero dizer aqui é que o espaço da DC também está a mercê das políticas educacionais. MAS PERAÍ! (pausa dramática) eu preciso de lembrar que tem muitos interesses que envolvem essas tais políticas educacionais, só para deixar as coisas mais complicadas. Então, essa é minha missão aqui hoje, te oferecer uma visão panorâmica da importância das políticas educacionais para a divulgação científica, e o elo perdido hoje, é o ensino de ciências, lá na escola básica.
Ponto 02 - A importância da visão de conjunto
Mas antes de eu falar especificamente sobre essa relação entre políticas educacionais, ensino de ciências e divulgação científica, eu preciso te alertar para algo que estamos perdendo com essa liquidez e fragmentação que a internet trouxe: justamente uma visão de conjunto, uma visão sistêmica das coisas.
Se você conseguiu chegar até aqui, quantas vezes você checou suas redes sociais enquanto lia/ouvia? Quantas você fragmentou seu pensamento perdendo a sua atenção para alguma coisa aqui na internet? Pois é, pode ter sido ser chato para você tooodo esse assunto até aqui. “E que rodeio danado que você está fazendo James!? rudia rudia toco e não fala logo o que quer falar”. Talvez você quisesse que eu falasse logo da importância das políticas educacionais para a divulgação científica em uma frase e ponto final, cabô o episódio/texto, “bola pra frente”. Mas o importante aqui são as conexões que regem as coisas, pois estamos cada dia mais informados e menos sábios.
Sabemos de milhares de pontos de informação, mas não sabemos de onde aquilo veio e para aonde vai. Queremos saber um pouco de tudo, mas acabamos sabendo tudo de nada. Muita gente sabe dos cortes na verba do CNPq, mas não sabe de onde isso veio, por que veio e o que vai causar. Muita gente sabe da BNCC), mas não sabe por quem ela foi produzida e com quais interesses mais ou menos evidentes (ou talvez pior, nem ouviu falar). E isso tudo me preocupa.
A solução para isso começa entendendo seu comportamento mas também, não se trata apenas de sair das redes e fazer um “detox digital”, precisamos entender elas e qual o interesse das redes sociais na nossa atenção, qual o interesse econômico. Esse é um problema coletivo, um ativismo que precisa da nossa mobilização para que quem toma as decisões não nos explore. Tem um vídeo do canal Normose aqui nas referências para te ajudar com isso.
Uma visão em conjunto pode nos ajudar a saber onde estão os “elos perdidos”, os pontos de conexão que podemos intervir com mais eficiência. Uma visão sistêmica nos ajuda a entender porque as coisas são como são e não aceita-las simplesmente.
Uma visão do conjunto pode nos ajudar a entender porque temos tantos problemas com a percepção pública da ciência hoje. E por sua vez, essa visão pode nos ajudar a entender o papel das políticas educacionais para a popularização da ciência.
Ponto 03 - A dependência da ciência e da divulgação científica do ensino de ciências e suas políticas.
Apesar da construção do conhecimento científico nortear o ensino e a divulgação da ciência, ela também depende deles. Afinal, só se torna uma ou um cientista quem já ouviu falar e gostou da danada da ciência, seja na escola ou fora dela. Mas o ponto que quero destacar aqui é a escola, a educação formal. Parte essencial da formação para cidadania é a alfabetização científica, porém, o que norteiam os currículos do ensino de ciências, de biologia, física, química, geografia, filosofia, história e sociologia são também interesses particulares daqueles que tem poder, geralmente econômico, que nem sempre representam o interesse comum para a formação de sujeitos críticos
Estudar como são gestadas e aplicadas as políticas que direcionam o ensino de ciências (e o ensino básico na totalidade) nos ajudam a trilhar de onde vem os interesses particulares sob os currículos. Grande parte das políticas educacionais (PE) mudam muito de um governo para outro, porém algumas resistem a essas mudanças e estão impregnadas de interesses nos documentos normativos e nos cargos nomeados para a gestão e política educacional.
Muitos desses interesses se manifestam a partir de parcerias público-privadas (ou em muitos casos na ordem de prioridade privadas-públicas). Essas parcerias estão repletas de interesses dos atores privados, que muitas vezes estão interessados nos ganhos econômicos diretos e indiretos que a educação básica pode proporcionar. E a educação básica é um ambiente que desperta muito esses interesses, pois esse é um espaço que forma também, para o mundo do trabalho (quando consegue). Fundações e institutos empresariais, que estão geralmente alinhadas com interesses econômicos mais globais, como os da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), atuam deliberadamente na formulação dos currículos da escola básica e consequentemente, do ensino de ciências.
Nesse sentido, a BNCC está repleta de interesses meramente mercadológicos e empresariais, alie isso a precarização da escola pública e cargos de gestão -por indicação- pouco combativos e teremos uma escola que reproduz a sociedade: escolas públicas formando mão de obra acrítica e escolas particulares formando lideranças empresariais. Dentro desse problema global, teremos um ensino de ciências que: ou serve a interesses práticos e técnicos ou não funciona adequadamente para entender como a ciência funciona em sua complexidade. No fim, teremos sujeitos que terão menos interesse pelo fazer ciência e/ou que também não se interessam por consumir conteúdo de divulgação científica depois do fim do ensino básico, para eles, a ciência só volta a aparecer nas manchetes dos jornais.
Ponto 04 - As políticas educacionais e seu impacto na ciência
Assim, percebemos que devemos compreender a complexa rede que interfere no sistema: políticas educacionais - ensino de ciências - construção e divulgação da ciência. Esse não é um sistema linear, se trata de um processo todo inter-relacionado, imbricado e inclusive, retroalimentativo, pois se as pessoas saem com uma parca formação cientifica do ensino básico, correm mais riscos não lutar e valorizar políticas públicas que deem enfase a uma alfabetização científica plena.
No final das contas, por mais que seja um caminho teórico e prático relativamente distante, a divulgação científica depende do ensino de ciências e suas políticas. Assim, para buscarmos uma melhor compreensão pública da ciência, devemos ter noção que existem diversas frentes simultâneas de enfrentamento nessa busca: as lutas nos ambientes de formulação de políticas públicas que se embasem em ciência, a luta pelo fomento para ciência e educação, a participação da academia e das comunidades nas políticas de construção dos currículos, a luta para ocupar os espaços para divulgar ciência e a luta contra a desigualdade social (pois muito as vezes, quem não tem o básico não lutará pela ciência).
São diversos espaços para sermos combativos na luta pelo ensino de ciências de qualidade. Espaços mais locais: na sala de aula; nos conselhos escolares e municipais; na universidade, através pesquisa em ensino de ciências; espaços mais amplos, como na formulação de leis e normativas em âmbito federal, na internet, divulgando ciência.
É uma luta coletiva, grande no espaço e no tempo, mas o que você pode pensar, de onde EU posso começar? Onde posso atuar para além da problematização (que é importante) e pensando na formação de jovens que tenham um ensino de ciências melhor que o tivemos e que possam cada vez mais, apreciar uma boa divulgação científica a e agir criticamente sobre ela.
Ponto 05 - Amarração e conclusão (Ficou perdido ou perdida? Eu arrumo pra você) Esse diagrama pode lhe ajudar a entender tudo que disse?
Então, qual a importância das políticas educacionais para a divulgação científica? Aqui nós apenas arranhamos a superfície da complexidade que envolve a popularização da ciência. A complexa rede que conecta políticas educacionais e divulgação científica precisa ser vista com mais cuidado por, cientistas, divulgadores e jornalistas que abordam ciência na internet.
Muitas vezes nos esquecemos da profunda crise educacional brasileira, fruto de um projeto de país que olha para o ensino de ciências ainda de maneira muito técnica e reducionista. Para termos uma divulgação científica mais sólida no Brasil, dependemos de uma educação básica que demostre o que é a ciência em sua diversidade e história. Que leve nossos jovens até um ceticismo bem embasado para refletir e agir sobre a sua realidade. Infelizmente a educação brasileira ainda patina nesse aspecto.
E o que temos hoje? Um projeto de educação voltado para o mundo do trabalho, que nem sequer disso dá conta. Um projeto em que nossas crianças e jovens não são confrontados de maneira cuidadosa com as contradições da nossa realidade sob a perspectiva do conhecimento científico. A formação acrítica que tanto falamos é resultado (e também causa) disso e de centenas de outros problemas das políticas educacionais que refletem nos currículos, na gestão escolar e no chão da sala. Ou seja, pensar num ensino de ciências de qualidade demanda pensar em políticas educacionais.
Quando pensamos e agimos sobre as políticas educacionais, também lutamos pelo acesso democrático ao conhecimento científico. Esse acesso irá refletir em consumidores e produtores de conteúdo de divulgação científica de qualidade, levando o estudo da ciência para o resto da vida, e muitas vezes, levará também a formação de futuros pesquisadores e pesquisadoras.
Uma das lutas mais básicas que devemos que fazer pela ciência é na educação, que deixamos às vezes de lado pensando que a divulgação científica vai salvar o Brasil do negacionismo, da desinformação e dos retrocessos. Precisamos de um plano de longo prazo para vacinar o povo contra a ignorância. Esse plano se trata de uma política de estado de educação que valorize a formação crítica e não a formação de mão de obra acrítica. Tanto o ensino de ciências como a divulgação científica, dependem disso. Essa luta é colossal e enfrenta os interesses de gente rica e poderosa. Gente que está por trás dos currículos da educação básica.
Percebem como a divulgação científica na internet está inserida em um ambiente complexo? Não dá para ser reducionista e pensar que ela vai salvar o Brasil da ignorância, mas também não devemos esquecer da sua importância. Divulgação científica é uma ótima medida paliativa para mantermos a ciência pulsando nas mídias e chegando a pessoas de diversas maneiras. O que não devemos fazer é deixar de acompanhar a divulgação científica sobre educação. É abissal o desconhecimento tanto de professores como de cientistas (em geral) sobre como são feitos e como funcionam os currículos da educação básica.
O problema começa por aí. A boiada das políticas educacionais voltadas para a formação técnica, acrítica, apolítica, a-histórica e a-cientifica está passando. E nós, voltamos nossos olhos para os assuntos do momento e ficamos letárgicos para o que realmente importa.
Referências, agradecimentos e indicações.
Esse episódio/texto é um grande panorama, para concebe-lo foram precisos anos da minha carreira e muitas referências, deixo algumas mais simples na descrição desse episódio. O roteiro dessa DHC foi escrito por mim, revisado pela novinha em folha equipe de estágio do ensinecast, composta pelo Leonardo, Victor, Lucas. Tem críticas? Escreva aqui!
Artigo: Políticas educacionais no Brasil: desfiguramento da escola e do conhecimento escolar: CP159_Miolo.indb (scielo.br)
políticas educacionais - Ministério da Educação (mec.gov.br)
Livro ciência picareta: https://g.co/kgs/cT3vQo
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