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DHC #004: Por que pode ser perigoso dividir a ciência em exatas, humanas e biológicas?

Por vários motivos, pode ser perigos dividir com tanta ênfase a ciência em humanas, exatas e biológicas. Tal divisão nos dá a falsa impressão que as três áreas divergem, ou tem suas próprias explicações para os mesmos fenômenos do mundo, de maneira independente umas das outras.


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Quem nunca ouviu alguém falando algo do tipo: Eu sou de humanas! Logo, não gosto de exatas, não gosto de matemática! Ou, o contrário, eu não preciso entender como a sociedade funciona por que sou de exatas, ou quem é de biológicas e diz que vai trabalhar com animais para “não mexer com gente” e não fazer contas? O que acontece na prática, é que a ciência como um todo, para funcionar de maneira mais eficiente precisa interagir e utilizar das diferentes áreas do conhecimento para formar teorias sólidas e coesas. O que isso quer dizer? Vou responder essa pergunta com um exemplo.

Imagine que você é um biólogo, o que um biólogo pode fazer? A primeira coisa que vem a nossa cabeça é que um biólogo trabalha com plantas e bichos, na verdade biólogos fazem muito mais que isso, mas voltemos ao exemplo. Imagine que você é um biólogo que trabalha com animais silvestres, especificamente com tamanduás. Você escolheu começar a biologia para trabalhar com animais por que é ruim em matemática e tem dificuldade em lidar com pessoas. Um dia, seu orientador decide que está na hora de você ir atrás dos bichos com mais independência e ele te diz: “preciso que você vá para o cerrado e colete informações sobre quais espécies de formiga os tamanduás da região se alimentam, para isso, vá nos lugares escavados por tamanduás. E depois, capture os bichos, colete o sangue, os pese e os solte”. As fazendas em que ficam as reservas que você estuda os tamanduás ficam a centenas de quilômetros de distância da sua faculdade e você parte para lá para ficar na casa de um fazendeiro estudando os bichos da região por algum tempo.

A primeira coisa que você descobre é que: como seu trabalho vai receber dinheiro do governo, você precisa mostrar para os patrocinadores (a sociedade) como e onde você gastou o dinheiro da sua viagem, e claro, precisa se organizar muito bem financeiramente. Para isso você precisa conseguir notas fiscais em todos os locais que consumir comida e combustível, e você vai precisar conversar com as pessoas e explicar que precisa dos cupons com seu nome e cpf. Isso já pode ser um desafio, acredite, ainda mais em cidades pequenas, mas vamos em frente. Chegando na zona rural, você precisa pedir informações para os moradores de onde ficam as matas, onde eles veem mais tamanduás, explicar seu trabalho para eles. Novamente, aqui é preciso saber ilustrar de uma maneira que todos possam entender, como funciona sua pesquisa, que muitas vezes é complexa e cheia de termos técnicos, você precisa dominar a transposição do conhecimento científico em popular, pois sem isso, você pode não ganhar a empatia das pessoas. Aí você encontra seu primeiro grande desafio, lidar com pessoas, pois sua pesquisa depende do respeito, compreensão e ajuda delas! Para conquistar a receptividade você precisa saber interagir. Mas prossigamos.

Antes de sair de viagem, seu orientador te explicou que você deveria contar quantas espécies de cupins e formigas os tamanduás se alimentavam, e quantas colônias estavam predadas na região por esses animais, além do peso e da coleta de sangue dos bichos. Você também deveria marcar em um mapa de coordenadas geográficas onde ficavam essas colônias de cupins e formigas, tudo isso em uma tabela eletrônica, no computador. Depois de vários dias de trabalho, você conseguiu uma tabela com muitas espécies desses insetos, vários avistamentos de tamanduás, vários pesos dos animais, centenas de regiões de alimentação e várias amostras de sangue com diferentes concentrações de substancias. Quando você retorna para seu orientador com esses dados, ele te explica que você deverá fazer varias analises estatísticas, que são equações matemáticas, para que seus dados comecem a explicar o fenômeno com mais segurança. Para isso, você deverá ler livros e aprender além das equações, a maneira de como faze-las no computador para comparar a alimentação dos tamanduás da sua região com os tamanduás avaliados por outras pessoas, usando os números que essas pessoas conseguiram. Você provavelmente teria milhares de números para colocar nas suas contas. Aqui estaria seu segundo desafio, descobrir que os números e equações estatísticas podem explicar até o funcionamento das coisas vivas, que eles nos fornecem uma base sólida pra explicar fenômenos!

Depois das suas contas e sua interpretação, você precisa escrever os seus achados em forma de um texto cientifico, dentro das normas da língua portuguesa ou as vezes em inglês. Muitas vezes os cientistas transcrevem esse texto para revistas, jornais e blogs também. Você descobre o terceiro desafio da sua saga: conhecer línguas e gramatica...

Depois de escrever seu trabalho, você descobre que os tamanduás da sua região comem espécies pouco nutritivas, e estão magros e subnutridos. Aí você se depara com um fato preocupante: que a espécie de inseto que falta na sua alimentação, está morrendo por que os agrotóxicos usados em indústria de cana de açúcar estão matando esse cupim e as matas estão desaparecendo, para piorar. Então, você fala com seu orientador, e ele te diz para procurar o secretário do meio ambiente para falar do problema e pedir soluções conforme a legislação.

Aqui está outro desafio maior ainda: os tamanduás que você está vendo morrer estão assim por uma decisão politica do prefeito de doar a área para a indústria. Seu ultimo desafio, conhecer legislação e política. No final das contas, o que todo bom cientista descobre, é que não existem ilhas de áreas do conhecimento isoladas, mas que sim, hora e outra vamos precisar de outros campos para complementar os nossos. Mesmo que o objeto de estudo de alguma cientista seja de determinada área, as áreas da ciência outras podem ser complementares em diversas ocasiões. Claro, hoje no Brasil podemos dizer que exigimos muito de nossos cientistas e não damos o devido valor a eles. Pode ser demasiada sobrecarga de conhecer de tantas áreas ao mesmo tempo, mas hora ou outra, algo é exigido de um cientista: a interdisciplinaridade e multidisciplinaridade. Mas o que são esses termos?

Bem segundo Myrian dos Santos “Multidisciplinaridade, pode ser um termo utilizado para indicar pesquisas de campos disciplinares distintos, os quais, no entanto, se unem em torno de um objetivo comum”. Com essa frase percebemos que não somos sozinhos na ciência. Relembrando o exemplo da sua pesquisa com tamanduás percebemos uma coisa, talvez você não precise saber de tudo de todas áreas, mas você pode estabelecer contato com pessoas de outros campos para lhe ajudar. Formar elos entre diferentes campos da ciência só a torna mais forte, e tira a sobrecarga de muitos cientistas, para suas análises estatísticas complexas, você pode pedir ajuda para um estatístico, para que ele lhe ensine ou que ele faça alguma das análises dependendo da ocasião.

Voltando nas definições, já interdisciplinaridade, ainda segundo Myrian dos Santos “Diferentemente da pesquisa multidisciplinar, a interdisciplinar parte da integração de uma ou mais disciplinas em uma nova abordagem, com a consequente construção de seus próprios objetos, conceitos, premissas e paradigmas.” Aqui temos a união de diferentes campos da ciência em um nível mais elevado, em que diferentes disciplinas se unem para formar algo maior. Como por exemplo, a união da química e da biologia, para formar a bioquímica. Esse é um exemplo de que encontros de diferentes áreas podem formar novos horizontes, nunca antes vistos com um olhar mais elaborado sobre o mundo.

O que eu quero dizer aqui é que perdemos muito dividindo com tanto afinco a ciência, dando a impressão aos jovens que estão ingressando na carreira técnica ou científica que você só pode pertencer a um desses “clãs”. Quando fragmentada assim, a ciência perde muita informação que pode advir de outras áreas para complementar teorias. Como tudo na internet, o debate que cada área da ciência teu clã foi catalisado, criando a falsa perspectiva que o cientista de cada área tem seu “perfil” ou estereótipo. Além desse debate (como boa parte dos debates na internet) ser raso e pouco coeso, ele nos leva uma visão determinista da ciência, o que pode levar a muitos preconceitos nos futuros cientistas.

Claro, em algumas ocasiões, dividir os diferentes campos de estudo da ciência pode ser útil, no que se trata de medir a quantidade de publicações, estabelecer políticas públicas, direcionar verbas. Isso pode ser mais necessário principalmente em ciências aplicadas, como ciências da saúde ou ciências econômicas. Porém, isso deve ser dosado, para não criar ilusões e preconceitos.

Referências

DOS SANTOS, Myrian Sepúlveda. Integração e diferença em encontros disciplinares. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 65, 2007.

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